“Aprendi a ser livre consigo (Herman)” – Henrique Raposo no Expresso

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Sobre Herman e a Liberdade – a crónica de Henrique Raposo no Expresso de 28 de Janeiro.

 

Meu caro Herman José, cruzámo-nos há uns anos no corredor da editora Guerra & Paz. O Manuel da Fonseca apresentou-nos e eu fiquei sem saber o que dizer ou fazer. Enquanto lhe apertava a mão, fiquei de boca aberta e acho que emiti um monossílabo. O meu caro não se lembra do episódio, como é óbvio, mas eu recordo-me destes 10 segundos patéticos porque foi o meu ídolo. Mais do que um ídolo, foi o meu amigo imaginário de uma época negra. Durante os dias de escola, eu chegava apavorado a casa, ia direto para a cozinha, ligava a TV, fazia uma sanduíche de fiambre e ficava a ver a “Roda da Sorte “.
A sua absoluta liberdade, meu caro, era a minha descompressão. Nas noites de sábado, ficávamos a ouvir o “Parabéns “. Sim, era mais ouvir do que ver; o “Parabéns“ era uma lareira oral que ficava ali aquecendo a sala. Na mesa, o pai projetava em papel milimétrico os móveis que tinha de fazer semana seguinte; ao lado, eu escrevia contos, entradas fictícias de enciclipédias, planteis imaginários do Benfica, críticas de cinema, batalhas virtuais da II Guerra Mundial. Quando a mãe se ria das suas piadas, lá levantávamos a cabeça para acompanhar a sua radical liberdade. E é sobre liberdade que quero falar consigo, porque nós em 2018 não temos liberdade que tinha em 1993.

Um dos nossos grandes críticos de cinema e TV, Alexandre Borges, dizia há uns anos que a nova geração de humoristas liderada por Ricardo Araújo Pereira(RAP) não fez nada de equivalente à “Herman Enciclopédia”. É verdade. A “Herman Enciclopédia” está para humor como “Portugal, um retrato social“, de António Barreto está para o pensamento: são dois monumentos de autorreflexão da Portugalidade. Todavia, julgo que a diferença entre o Herman e o RAP não se explica pelo talento. RAP é tão bom ou melhor do que o Herman. Não tem é a liberdade que o Herman tinha há vinte anos. Se fizéssemos réplicas de alguns sketches da “Herman Enciclopédia“, o RAP teria a carreira destruída na hora: a censura brotaria de regiões, de corporações e de associações disto e daquilo que nos vigiam com a presunção dos zelotas. Estão por todo lado, defendendo uma miríade de causas alegadamente sagradas. É a tirania das minorias (só há uma minoria que pode ser desprezada à vontadinha: as pessoas de direita que se Assumem como tal no espaço públic). Se fizesse uma réplica do episódio da “Roda da Sorte“ em que o Herman destruiu a montra com a caçadeira, o RAP ficaria sem carreira na hora: teria as hordas da net à perna.
Hordas essas, que depois seriam legitimados pelos tais zelotas. O curioso é que estes novos de zelotas são de esquerda. Os Diáconos Remédios de hoje são os progressistas. Ora, além de ser um problema per se, esta pressão do politicamente correto provocou a jusante uma contrarresposta radicalizada da direita. Por outras palavras, meu caro, estamos no meio de uma tenaz.

Quando nos encontrámos, não sabia o que lhe dizer. Hoje sei. Em primeiro lugar, quero agradecer-lhe; aprendi a ser livre consigo. Em segundo lugar quero fazer aquele: volte! Faça de novo uma “Herman Enciclopédia“; transporte para a televisão a liberdade subversiva que revela no Instagram.

 

Henrique Raposo, Expresso, Janeiro 2018

 

 

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