“O Herman mudou Portugal, mudou-nos (…)” – Pedro Marques Lopes in DN

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Há uma excelente razão para se estar na rede social Instagram: o Herman José. O mais extraordinário artista popular português de todos os tempos fez que eu e, com certeza, muitos milhares de portugueses passemos várias vezes ao dia por essa rede social só para ver se ele lá pôs mais um pequeno filme ou uma foto.

O Herman está a fazer no Instagram o que fez com todos os media. Revolucionou a rádio e a televisão, começou na stand-up comedy quando cá no burgo ninguém sabia o que era isso, fez de concursos de fim de tarde programas de televisão únicos, inovou o conceito de talk show e é certo e sabido que deve ter inventado mais umas coisas. Agora, lembrou-se de criar qualquer coisinha para uma rede social que, aparentemente, só serve para pôr umas fotos de viagens, uns retratos de família e passear vaidades e, pronto, não há dia em que não nos arranque gargalhadas com uma criatividade que nunca cessará de me espantar.

O nosso verdadeiro artista, além de ser verdadeiramente multimédia, ou seja, não há meio em que ele não brilhe, consegue algo raríssimo: atinge todos os públicos. É o artista popular que faz rir o mais sofisticado dos públicos e é o artista marginal e sofisticado que anima a mais popular das festas. Canta a canção do beijinho com a mesma facilidade que faz uma entrevista histórica. E se os mais novos não se lembram do Tal Canal, do Hermanias, do Casino Royal, do Parabéns ou da Roda da Sorte e se já pouco ligam à televisão, lá está o homem no Instagram a desinquietá-los. E não fica à espera de que os paizinhos lhes mostrem os vídeos ou os mandem ver TV, vai buscá-los onde eles andam.

Um dos problemas de quem quer dizer qualquer coisa sobre o Herman José é que nunca sabe por onde começar nem como acabar. Melhor, um tipo escreve ou diz o óbvio, ou seja, que ele é um sacana de um génio, de um predestinado, e depois desata a descrever todas as personagens que inventou, todos os programas que fez, todos os bordões que andam na boca de toda a gente, tudo o que ele mudou e não consegue porque são demasiados caracteres, demasiadas palavras, são paletes e mais paletes do trabalho dele. Basta alguém numa sala lembrar-se de um sketch do Herman, de uma frase, e é certo e sabido que são horas de recordações sobre o que fez e de comentários sobre o que hoje faz.

Aliás, um dos aspetos mais notáveis do nosso Herman (o mais português dos portugueses, apesar de ter também sangue alemão) é a sua capacidade de trabalho, não conseguir estar quieto, uma inquietação permanente. Porque não tinha de fazer mais nada para ficar para sempre no nosso imaginário: duas ou três coisas bastavam. No meu caso, bastava o sketch do "eu é mais bolos" (frase que disse apenas uma vez e que todos repetimos há muitos anos e que continuaremos a repetir) ou quando, a fazer de Baptista-Bastos, entrevista Deus ou quando, enquanto Lauro Dérmio, pirilampa. Ou quando o Nelo comemora os 20 anos do "maldito bicho" – a sida – ou quando encarna a Bxafestivaleira ou, ou, ou ,ou, ou (não disse que não se pode começar?). Mas ele arrisca, arrisca sempre, sem medo de falhar. Imagino que deve ter falhado, apesar de eu não me lembrar, ou talvez porque o que é bom é tão bom que o eventualmente menos bom apaga tudo. Seria tão fácil encostar-se à sombra da bananeira e esperar pela adulação. Mais fácil e, de certeza, bem mais proveitoso. É que neste país compensa não arriscar fazer coisas novas, é a melhor maneira de se tornar consensual.

Arriscar, repito. Agora que há tanta gente preocupada com uma imaginária limitação das liberdades, que não falta quem denuncie polícias do pensamento que só existem nas suas cabeças, por motivos políticos ou porque serve para ganhar popularidade, talvez seja bom lembrar que o Herman, sim, foi alvo de censura. Foi a ele que censuraram um sketch, foi a ele que retiraram um programa da grelha. Num tempo em que é giro e não apresenta risco absolutamente nenhum dizer coisas alegadamente contra a norma estabelecida e que costumam pelo contrário ser a afirmação de uma norma estabelecida de discriminação, é bom e justo lembrar que ele sim fazia coisas que ninguém fazia e abordava assuntos de que ninguém falava, num modo completamente novo.

Recordo também que aguentou todas as calúnias e todas as infâmias sem se pôr em bicos de pés nem puxar dos galões de superestrela.

O Herman mudou Portugal, mudou-nos, fez de nós gente menos sisuda, descinzentou-nos um bocado, brincou com os nossos defeitos, questionou e continua a questionar os nossos preconceitos e os nossos valores. Fez-nos mais atentos. O humor tem isso, alerta-nos, desperta-nos, desconstrói coisas sobre as quais nunca nos tínhamos interrogado – de uma forma que nenhum discurso, por mais elaborado e bem feito que seja, consegue. É talvez por isso que o humor é uma arte, uma arte maior, e que o Herman é o nosso maior artista.

Aqui há atrasado, um dos meus filhos, que vive no estrangeiro e que nasceu quando o Herman já era um quarentão, telefonou-me e disse-me que tinha visto um sketch do Hermanias e que aquilo o orgulhou de ser português. É isso mesmo.

O Herman seria uma vedeta mundial se tivesse nascido numa parte do mundo mais, digamos assim, exposta. Que sorte tivemos nós em que ele tivesse aqui nascido.

Por tudo o que nos deste e dás, obrigado Herman.

 

Pedro Marques Lopes in Diário de Notícias 10 de Setembro de 2017